Entrelinhas


Este conto surgiu para um desafio literário, com o tema loucura, promovido pelo portal Entrecontos. A inspiração me veio com o livro Como Ler Literatura, de Terry Eagleton, crítico e teórico da literatura. Foi minha participação mais bem-sucedida, conseguindo um honrado quinto lugar.



Enfim! Obrigado, muito obrigado. Graças a você, leitor, agora existo. Não é ruim essa minha meia existência. De forma alguma! Mas é condicional, é condicional. Sem você, aí, do outro lado, segurando o papel ou, mais provavelmente, olhando diretamente para a tela de seu equipamento eletrônico, eu sou nada. Nenhum impulso, nenhum desejo. Nada.

Todos aqui somos nada, na verdade. Eu, meus colegas e vizinhos, enfermeiros, médicos, visitantes. São nada também os pássaros do jardim, as flores do jardim. O próprio jardim só existe agora, enquanto você está aí, lendo. As janelas gradeadas, as paredes acolchoadas e as belas roupas brancas e azuis com que todos aqui desfilamos pelos corredores pálidos e gelados cheirando a formol. Deixam todos de existir no momento em que a tela fica escura, ou o papel é deixado de lado.

Sou conhecido por 47-B. Meu nome anterior já não faz mais sentido. Daniel, Daniela, Julio, Julia, tanto faz. Hoje sou Quarenta e Sete, sobrenome B. Meu quarto e minha ala. Mas pode me tratar por 47. Só tenho sobrenome mesmo quando gritam comigo: “Quarenta e Sete Bê, solte essa seringa! Quarenta e Sete Bê, desça do parapeito! Quarenta e Sete Bê, cuspa os cacos de vidro!”

A vida aqui é pacata. Passeio pelos corredores vislumbrando, através das janelas, o colorido do exterior cortado por listras verticais, cinzas e metálicas. Mas as árvores, as nuvens, os contornos dos prédios, são exatamente como me lembro. Minhas idas ao jardim são poucas e controladas. Nunca sozinho. Minha companheira, a enfermeira Joice, me observa o tempo todo. Eu entendo, é seu trabalho. Mas o que eu poderia fazer? Correr e escalar o muro, buscando a liberdade nas ruas? De forma alguma. Sou feliz aqui. E sou mais feliz quando passo a existir.

Meus colegas não aceitam muito bem essa nossa condição de existência, essa nossa vida submissa à vontade e disponibilidade de um terceiro. Acham que, quando prego sobre isso, não estou em minhas plenas faculdades mentais. Mas são uns inocentes, doentes mentais que lidam com realidades além desta aqui. Delírios, esquizofrenias. Nenhum deles têm a mesma consciência expandida que eu, infelizmente. Prego a incapazes de compreender. Mas prego, assim mesmo.

Outros que não aceitam a verdade são os funcionários. Médicos, enfermeiros, seguranças. Todos me ouvem, com muita paciência e disposição. Mas seus olhos entregam a descrença. Ninguém quer ouvir, ou crer, que a própria existência é condicionada à vontade de um outro, como você, leitor, que me faz existir neste exato momento. Curiosamente, carregam no próprio corpo adereços e tatuagens religiosas, e fazem contato com seu ser superior socialmente aceito a todo instante. A incoerência me incomoda, mas a engulo. Minhas revoltas anteriores nunca surtiram mais efeito do que alguns dias confinado no andar de cima, onde as paredes são macias e as roupas têm mangas longas.

A enfermeira Joice é o epíteto desse comportamento negacionista. Nos conhecemos no minuto em que coloquei os pés nesta instituição. Já naquela época passou a acompanhar os meus desenvolvimentos. E já naquela época me ouvia com os olhos, não com os ouvidos. “Joice”, dizia eu, “não sou louco”. “Claro”, dizia ela em resposta, “agora tome seus remédios”. Muito profissional, ela. Nunca dera margem para os conhecimentos que eu, ávido por compartilhar, derramava verbalmente em seus olhos surdos. “Sim, Quarenta e Sete, claro. Deixe-me afrouxar essa amarra para você ficar mais confortável”.

Mas, chega, por enquanto. Esse exercício de existência me deixou eufórico. E, se me notam eufórico, voltam a me dar comprimidos inteiros. Em nosso próximo encontro falarei sobre alguns dos funcionários. E talvez sobre alguns dos meus colegas.

*  *  *

Joice bateu levemente. Como não ouviu resposta, tentou a maçaneta e, sentindo-a destrancada, entrou para encontrar o médico roncando baixinho, recostado na antiga cadeira de couro e os óculos na ponta do nariz. O livro, ainda parcialmente seguro em uma das mãos, deslizava milímetro a milímetro em direção ao chão.

– Doutor? Doutor Santana? – Foi entrando devagar pelo consultório. Desviou do divã e deu a volta na imensa escrivaninha de jacarandá, herança de épocas mais tradicionais da clínica. Pegou o livro da mão flácida do médico e o deixou cair em cima do tampo escuro do móvel. O peso do volume provocou um estalido, e o médico se endireitou despertando do cochilo.

– Enfermeira Joice? Perdão, eu estava concentrado.

– Não tem problema, doutor. Depois do almoço eu também pego no sono se pegar algo para ler. Doutor, queria te mostrar isso – disse a enfermeira, tirando do bolso do jaleco azul um texto manuscrito.

O médico ajeitou os óculos e esticou a mão.

– Achei isso hoje no quarto 47. 

Doutor Santana passou os olhos rapidamente pelo papel. – Está recomeçando, não é? Faz algum tempo já que ele havia deixado isso de lado.

– Sim, doutor, o pessoal estava até começando a achar que ele ia acabar saindo dentro de alguns meses. Muito pacato, muito educado. Até nos ajuda a controlar os mais exaltados, de vez em quando.

– Não vamos nos precipitar, entretanto. Vou encaixá-lo em algum horário. Acho que amanhã já consigo vê-lo. Devolva o manuscrito ao quarto dele. Não queremos que ele fique agitado, ou que se coloque na defensiva – esticou o papel de volta à enfermeira e abriu uma agenda. Bateu o dedo em cima da página aberta. – Aqui, avise-o para me visitar amanhã, no primeiro horário. Vamos ver em que pé está essa situação.

– Obrigada, doutor. Espero que seja só uma preocupação boba. Mas se pudermos controlar isso logo no início, quem sabe ele continua melhorando sem uma recaída mais grave. Obrigada. Vou deixar o senhor retomar sua… leitura.

A enfermeira saiu e o médico ficou contemplando a janela por algum tempo, refletindo sobre a situação do paciente. Então bocejou longamente, arrumou os óculos na ponta do nariz e voltou a se recostar na cadeira. Em alguns segundos já estava adormecido.

 *  *  *

– Bom dia! Como estamos hoje? Por gentileza, sente-se aqui no divã. Faz algum tempo que não o recebo aqui, Quarenta e Sete.

– Bom dia, doutor Santana. De fato. Não nos encontramos nessa rotina de médico e paciente há algumas semanas. Fiz alguma coisa para merecer esse encontro?

– Que tal se conversarmos um pouco sobre essas semanas que ficamos sem nos encontrar? Há algo que gostaria de me dizer? Algo relevante que eu deva saber?

– Acho que não, doutor. Mas estou ficando assustado. Eu fiz alguma coisa suspeita e vieram relatar para o senhor, não foi? Coitada da Joice. Só pode ter sido ela. Seja lá o que for que eu tenha feito, pedirei desculpas a ela. Não foi minha intenção.

– Não, Quarenta e Sete. Veja bem, não aconteceu nada de grave. Só achei que deveríamos retomar alguns temas de nossas conversas mais antigas. A enfermeira Joice falou muito bem de você, na verdade. Disse que vislumbra, em um futuro próximo, a sua partida da clínica.

– Ah, doutor, eu agradeço. Mas sou muito feliz aqui. Não gostaria de sair. Mas, claro, eu entendo. Estamos em uma clínica. Não posso ficar aqui, a menos que eu esteja… bem, que esteja louco.

O médico abriu um caderno de anotações e buscou uma página no começo. Arrumou os óculos na ponta do nariz e leu em voz alta: “não existimos, o senhor e eu, não até que nos leiam”. – Você se recorda disso? O que pode me dizer sobre isso?

– Doutor, eu me lembro disso. E, desde o dia em que o senhor anotou isso aí no caderninho, já não tenho mais incomodado ninguém com essa história. Bom, pelo menos ninguém que realmente fique incomodado.

– Certo. Então ainda estamos acreditando nessa teoria, correto?

– Doutor, não quero que isso soe como coisa de um paciente normal da clínica, mas, sinceramente, não é exatamente uma questão de acreditar. Não falo de fé. Falo de fato.

– Conte-me mais, por favor.

– Doutor, nada mudou, na verdade. Se eu tenho algum nível de loucura, ele permanece o mesmo. Ele existe porque estou sendo lido desta forma. Nas páginas em que fui criado, fui descrito desta forma. Só posso mudar se assim estiver escrito e se assim for lido. 

– Entendo. Então, digamos, por uma hipótese, que esteja escrito que daqui em diante, ao invés de sua receita de remédios, você passe a tomar uma nova. Não teria problema algum, correto? Estaria escrito.

– O senhor entende, então?

– Acho que entendo. Mas acho que será preciso que voltemos a conversar novamente em breve. Mas, por enquanto, fico feliz que tenhamos batido esse papo, Quarenta e Sete. Mas vamos já deixar marcado. Quero vê-lo novamente em quatro dias. Mesmo horário?

– Mesmo horário, doutor. Nos vemos daqui a alguns dias.

– Ao sair, por gentileza, peça à enfermeira Joice que passe por aqui o mais rápido possível.

*  *  *

Acredito que não preciso descrever nada do que aconteceu hoje para você, certo? Você leu toda a minha conversa com o doutor Santana. Desculpe-me pelas letras tremidas, mas estou tenso, estou tenso. A enfermeira Joice saiu do consultório com um papel e foi direto à enfermaria. Vão mudar minha medicação. Provavelmente para algo mais forte. Não posso tomar algo mais forte, não quero virar um vegetal. Eu penso. Eu raciocino. Essa é a minha força, e não vou perdê-la. Não vou.

Eu estou certo. Só existo quando sou lido. Você sabe disso, não sabe? Você não sabia de nada disso até começar a me ler. E, depois que parar, deixarei de existir. Você pode até achar que continuarei existindo em sua memória. Mas, não. Na sua memória não sou eu. Na sua memória é você mesmo, tentando codificar-me de uma maneira que se enquadre em suas experiências e conhecimentos. Seria um eu distorcido pelo filtro de sua própria existência. Não, só existo aqui mesmo, neste momento em que me lê.

Eu não queria ter que provar. Não queria provar isso a ninguém. Seria muito mais fácil se todos conseguissem enxergar o mesmo que eu. Mas momentos extremos pedem medidas extremas. Sou muito feliz aqui. Mas é hora de mudar. Não perderei minha essência para medicamentos.

Veja, esta é minha cama. Ela é de um metal pintado de branco, com um colchão duro, embrulhado em um lençol verde. Está limpo. O travesseiro, também embrulhado em verde, já está no chão, onde o joguei mais cedo quando acordei. Meu quarto é quadrado, tem uma janela pequena, gradeada e alta. A porta é simples, mas forte. Está fechada no momento. Não trancada, não posso trancá-la por dentro. Mas, no momento, é o suficiente estar fechada.

Você pode se assustar, mas é como as coisas são. Só existo se você estiver aí, me lendo. Assim como o quarto. Assim como a cama, como tudo aqui. Nada é ou foi dito sobre o corredor do lado de fora. Se o corredor é curvo, ou reto, ou se não há corredor de fato. O corredor só existirá no momento em que você o ler. Mas… E se você ler que, ao abrir a porta, em vez do corredor eu me deparar com uma rua? Se você ler sobre a rua, ela existirá. E, se eu sair pela porta, estarei nessa rua. Certo? Uma rua qualquer, longe daqui.

Portanto, como prova daquilo que creio, da minha existência condicionada, sairei por aquela porta e estarei em uma rua. Você terá lido isso, o que garante o meu sucesso, garante a minha fuga. Eu não queria fugir, acredite. Mas é necessário, é necessário. 

Abro, então, essa porta, e a atravesso para a liberdade. Agradeço com todo o meu ser por me proporcionar esta saída. Talvez voltemos a conversar em outra oportunidade. Até mais. Cuide-se.

*  *  *

Quarenta e sete deu dois passos decididos em direção à porta. Pegou na maçaneta, a mão tremia levemente. Ele demonstrava uma crença muito forte. Mas, como ser humano, não podia deixar de temer pelo fracasso. Chegou mesmo a fechar os olhos ao puxar a porta. E então deu o passo seguinte, saindo do quarto.

A rua era movimentada o suficiente para que ninguém notasse por mais do que alguns segundos o homem vestido em roupas de hospital. Carros passavam indo e vindo, e a gente na calçada parecia ocupada demais para prestar atenção em alguém em trajes extravagantes. Quarenta e Sete, então, entrou no fluxo do caminhar apressado da multidão e sumiu para a liberdade.

*  *  *

– Alguém deve tê-lo visto. Não é possível! 

– Sumiu, doutor. Sem deixar nenhum rastro. O pessoal da segurança revirou o prédio, viu as filmagens do circuito interno. Mas nada. Absolutamente nada. Sumiu como se nunca tivesse existido.

– Joice, isso é ilógico. Há uma explicação, só não estamos conseguindo enxergá-la.

– Eu sei, doutor. Daqui a pouco o pessoal da segurança vai começar a ouvir os internos. Talvez algum deles tenha visto alguma coisa. Alguns gostavam muito do Quarenta e Sete. Como pode? Todo mundo achava que em breve ele sairia curado… 

– Pode me dizer com qual dos internos ele passava mais tempo? Ou se ele mantinha uma amizade mais próxima com alguém especificamente?

– Não, doutor, ele era igualmente amigável com todos. Mas… Bom, há um deles que talvez se enquadre nessa definição. Mas acho que o senhor não conseguirá nada dele. Nunca diz nada, e parece catatônico na maior parte do tempo. O Quarenta Sete mostrava as coisas que escrevia para esse paciente.

– Mostrava? Joice, por favor, localize-o e traga-o ao meu consultório. Imediatamente.

– Claro, doutor. Agora mesmo.

*  *  *

Pouco mais de dez minutos após a conversa com a enfermeira e o doutor Santana recebia em seu consultório o interno do quarto 13. Não havia se preparado direito, pois ainda estava muito nervoso com o evento do sumiço do Quarenta e Sete. Então, quando o viu entrar, tudo o que conseguiu dizer foi “sente-se”. Joice, que acompanhava o paciente, colocou-se à direita do médico, observando.

O doutor arrumou sua poltrona de modo que ficasse de frente para o interno. Pegou caderno e caneta, ajeitou os óculos na ponta do nariz e, com o olhar passando por cima das lentes, fitou em linha reta. Os olhos azuis, antigos, cansados, emoldurados por uma pele excessivamente branca, de quem vive essencialmente fora do alcance da luz do sol, estavam bem abertos e atentos.

– Peço desculpas, mas a urgência exige que eu seja direto. Quarenta e Sete falou com você?

Os olhos azuis perscrutavam as reações, e a caneta traduzia tudo no caderno de anotações.

– Imagino que ele tenha pedido para manter tudo em segredo. Mas é de vital importância que você nos diga tudo o que sabe. O bem-estar de seus colegas aqui na clínica pode estar comprometido.

A testa do médico, sempre tão tesa, marcada apenas pelas rugas do tempo, agora se dobravam sob o peso da preocupação.

– Você tem que nos dizer algo. Por favor, diga algo. 

– Doutor, o olhar dele… Os olhos se movem.

– Eu sei que consegue nos ouvir.

– Os olhos dele se movem como se estivesse… 

– Sim, eu percebi. Ele parece lendo. Está nos lendo, interno? Consegue dizer algo?

– Doutor, desculpe-me, acho que não vamos conseguir nenhuma resposta. Ele só continua mexendo os olhos. Acho que não é o momento para isso. Tenho medo de como ele possa reagir.

– Perdão, Joice, perdão. Eu mesmo estou me sentindo mal – o doutor colocou o caderno de lado e passou os dedos nos olhos fechados. – Isso foi um erro. Leve o paciente ao seu quarto. Ele não reage às nossas palavras. Bom, não reage mais do que isso aí, esses movimentos de leitura.

Joice levantou e, com delicadeza, ajudou o interno a se levantar também. Algumas palavras tranquilizadoras, um braço de apoio e os dois se encaminharam para a porta. Doutor Santana deu a volta na escrivaninha de jacarandá e deixou o corpo cair pesadamente na cadeira. Pensava na fuga de Quarenta e Sete, sim, mas, naquele momento, o interno que acabara de sair de seu consultório o intrigava mais.

“Ele estava me lendo”, pensou. “Não estava me ouvindo, estava me lendo. Estava lendo…”

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